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TEORIA DAS PROVAS EM SHAKESPEARE

Uma análise da peça Otelo e as reflexões sobre o direito

É comum no processo judicial a presença da dúvida. A incerteza justifica e impulsiona o conjunto de atos jurídicos que forma o processo e o encaminha para a consecução da verdade processual e da decisão de mérito.


Além da dúvida, há o risco de erro judicial, devendo-se, através das garantias processuais, maximizar o êxito das decisões de mérito, observando-se o dever constitucional de fundamentação das decisões (art. 93 da CF) e, no âmbito do direito trabalhista, a exigência contida no art. 832 da CLT, segundo o qual as decisões devem sempre apreciar as provas produzidas pelas partes.


Tais exigências legais, em última análise, buscam garantir o devido processo legal e o contraditório substancial.


As provas colhidas ao longo da fase instrutória, portanto, cumprem um papel indispensável, sendo elas as fontes a partir das quais o julgador se torna apto a tomar a sua decisão. Em teoria, quanto mais robusto e esclarecedor o acervo probatório constituído no processo, menor a incerteza e, consequentemente, menores os riscos de erro judicial.


É nesse cenário que a discussão sobre o ônus da prova se torna essencial para a compreensão da dinâmica processual, em especial na prática trabalhista, em que o dever de produzir provas é atravessado pelas especificidades da relação entre empregador e empregado.


O tema da prova não só não é recente, como remonta a séculos de teorias e aprimoramento das ciências jurídicas.


Prova disso é a presença longínqua do tema em clássicos da literatura e do teatro, como a peça shakespeariana Otelo, o mouro de Veneza.


É na interface entre Direito e literatura e o papel desempenhado por ambos na reflexão sobre a sociedade em que vivemos que reside o intuito do presente artigo: refletir sobre a importância do ônus da prova sob a ótica das provocações suscitadas por Shakespeare em Otelo.


Otelo, o mouro de Veneza (1603), é uma das peças mais famosas do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1516), considerada uma das quatro grandes tragédias escritas pelo autor.


O enredo nos apresenta a história de Otelo, um general mouro que servia ao reino de Veneza, e as relações que estabelece com a jovem Desdêmona, sua esposa, o tenente Cássio, a quem confia o cargo de tenente, e com o maquiavélico Iago.


Na trama, Iago, sub-oficial, por não se conformar com a nomeação de seu rival Cássio para o cargo de tenente por Otelo, arquiteta uma conspiração na qual planta falsas suspeitas de que Desdêmona, esposa de Otelo, e Cássio mantinham um caso extraconjugal.


O complô armado por Iago tem um desfecho trágico. Otelo, ludibriado por falsas evidências, mata sua esposa acreditando que esta o traia e, por fim, comete suicídio.


Ao espelhar a vida, a obra de Shakespeare nos apresenta situações que podem ser correlacionadas com o direito, vejamos.


Na peça, a patente de tenente sempre foi almejada por Iago. Quando Otelo nomeia Cassio para ocupar o cargo, Iago forja uma suspeita e desvirtua fatos para que Cassio seja destituído do cargo, deixando-o livre para ser ocupado por Iago.


Acontece que, baseado somente nas informações e indícios apresentados por seu mal-intencionado sub-oficial, Otelo comete o bárbaro homicídio da sua esposa.


Como um guerreiro acostumado a batalhas sangrentas, habituado a se ver em situações nas quais precisa tomar decisões rápidas e imediatas, Otelo toma sua decisão sem uma análise mais apurada e detida das circunstâncias. Pune Desdêmona e Cassio sem que a eles fosse concedido o devido contraditório e a ampla defesa.


Otelo toma uma decisão grave - matar sua esposa – motivado apenas por indícios e suspeitas.


Nesse sentido, trazendo esse assunto para a teoria da prova, terão por consenso que são necessários mais que indícios, suspeitas, sinais ou vestígios para que uma decisão tão grave seja tomada.


Essa perspectiva quanto às provas de determinado fato alegado, bem como a discussão quanto ao ônus de quem deve provar o quê, é um dos aspectos mais importantes do Direito.


Pois bem, a palavra ônus, originária do latim onus, significa peso, encargo, coisa difícil, trabalho. No sentido jurídico, é entendida como todo dever que pesa sobre uma coisa ou uma pessoa.


Já o vocábulo “prova” pode ser empregado no sentido de “meio de prova”, ou seja, o modo pelo qual a parte intenta evidenciar os fatos que deseja demonstrar em juízo. Inclusive, Ada Pellegrini conceitua a prova como sendo “o farol que deve guiar o juiz nas suas decisões”.


Logo, o ônus da prova é o encargo atribuído a uma das partes para demonstrar a existência ou inexistência daqueles fatos controvertidos no processo.


Contudo, faz-se importante, antes de adentrar na discussão quanto ao ônus da prova, esclarecer que havendo provas no processo, não há que se falar em ônus, tendo em vista que, a partir do princípio da comunhão da prova, esta pertence ao processo e não às partes, sendo irrelevante quem as produziu.

Ou seja, ainda que determinada parte não tenha o ônus de produzir uma prova, caso o faça, esta passará a pertencer ao processo (art. 371, CPC).


Efetivamente, quanto ao ônus de provar determinado fato, o sistema processual brasileiro prevê (art. 373, CPC; art. 818, CLT) que incube ao autor provar os fatos constitutivos do seu direito e incumbe ao reclamado provar os fatos extintivos, modificativos e impeditivos do direito da outra parte.


Nessa perspectiva, têm-se três teorias quanto ao ônus da prova: a teoria estática, que distribui previamente o ônus de cada uma das parte (como previsto no art. 373 do CPC e art. 818 da CLT); a teoria dinâmica, que consiste na possibilidade de o julgador, na análise do caso concreto, atribuir o ônus da prova àquele que possui melhores condições de produzi-la (o que deve ser feito de forma fundamentada, art. 373, §1º, CPC e art. 818, §1º, CLT, nas hipóteses previstas em lei e/ou diante da peculiaridade da causa); a teoria convencional, que consiste nas partes convencionarem forma diversa de atribuição do ônus da prova.


Além disso, a partir da teoria dinâmica, o juiz poderá inverter o ônus da prova por meio de uma decisão fundamentada. Destaca-se que a decisão que alterar o ônus da prova deve ser proferida antes do início da instrução e, se essa alteração for requerida pela parte, poderá ocasionar o adiamento da audiência de instrução para possibilitar que a prova dos fatos seja produzida pelos meios possíveis.


Dentro dessa perspectiva, torna-se necessário destacar que, ainda que o Juízo seja o destinatário final da prova, o juiz não deve impedir que uma parte produza determinada prova sob o fundamento de já estar “convencido”, tendo em vista que: 1- cada parte, a partir de sua linha de argumentação/raciocínio deve ter a possibilidade de levar aos autos aquilo que achar conveniente; 2- o juiz singular pode não ser a “única parte do Juízo” a apreciar os autos, levando-se em conta os tribunais regionais e os tribunais superiores.


Retomando a questão da distribuição dinâmica do ônus da prova, é importante ressaltar que a jurisprudência trabalhista também admite a inversão do ônus em algumas circunstâncias específicas. Nesse sentido, destacamos algumas regras sumuladas pelo TST:


a) presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego (Súmula nº 443 do TST);


b) é ônus do empregador que conta com mais de 20 (vinte) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de frequência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário (Súmula nº 338, I, do TST);


c) é do empregador o ônus de comprovar que o empregado não satisfaz os requisitos indispensáveis para a concessão do vale-transporte ou não pretenda fazer uso do benefício (Súmula nº 460 do TST); e

d) é do empregador o ônus da prova em relação à regularidade dos depósitos do FGTS, pois o pagamento é fato extintivo do direito do autor (art. 373, II, do CPC de 2015) (Súmula nº 461 do TST).


A partir das súmulas citadas, nota-se, dentro do direito do trabalho, a dinamicidade da atribuição do ônus da prova tendo em vista o princípio da proteção que busca equalizar a relação jurídica empregado-empregador, na qual tende a haver uma parte hipossuficiente.


Portanto, a partir do exposto, restam evidenciadas a importância da prova dentro do direito, bem como a relevância que é saber de quem é ônus de provar o quê, tudo isso para que a decisão judicial se aproxime o máximo possível da realidade e de uma solução mais justa para determinado conflito. Ou seja, a decisão judicial precisa estar bem fundamentada, pautada em provas, com a convicção do Juízo se dando de forma exauriente, para que não se tornem “sentenças” como aquela proferida por Otelo que mata sua esposa a partir de indícios e suspeitas.


Gilton Fernandes

Matheus Machado

Tatiele Oliveira

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